quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Letícia Sabatella:Entrevista

O dito popular “mulher morre de inveja de mulher” e a propalada história de que a relação entre elas é movida por interesse, ciúme ou disputa não contaminam Letícia Sabatella . A actriz tem fé nas amigas, adora dividir o palco com mulheres e desconhece o que seja inveja. Não é por prazer ou capricho que quebra estigmas. Ela completou 37 anos neste 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Nascer numa data de luta influenciou seu carácter. Quando faz aniversário, é impossível não lembrar que 129 operárias americanas morreram queimadas pela polícia, em 1857, enquanto reivindicavam melhores condições de trabalho. “Sou apaixonada pelas mulheres”, revela. Trata-se de amor mesmo – pelo ser humano e por tudo que está à sua volta. Certamente é esse o sentimento que leva Letícia à política. Sua aparição na TV, em Dezembro passado, chorando por que o Supremo Tribunal Federal autorizou a continuação das obras de transposição do rio São Francisco, foi uma mostra de que seu compromisso vai além dos muros da Rede Globo, onde fez fama. Orçado em 5 bilhões de reais, o projecto que preocupa Letícia prevê o bombeamento de 1,4% do volume do São Francisco para abastecer rios do Ceará, Rio Grande do Norte, de Pernambuco e da Paraíba, que secam em certas épocas do ano. A actriz não ficou nas lágrimas. Escreveu uma dura carta ao deputado Ciro Gomes (marido de sua amiga Patrícia Pillar ), que acusara o bispo Luiz Cappio de fazer a nação de refém com uma greve de fome em defesa do rio.

Também com Ciro , travou uma discussão no Senado, em Fevereiro, depois de discursar para os parlamentares dizendo que “a água deve ser tratada como sangue vital, nosso mais precioso património , que não pode ser reduzida à condição de mera mercadoria”. O deputado, que já havia rebatido as críticas da actriz, pediu a ela que não o tratasse com formalidade. Letícia respondeu que não tinham intimidade e que havia lido que ele era um dos deputados que mais faltavam no Congresso. Ela não tem poupado nem mesmo o presidente Lula, a quem sempre deu apoio. Criada em Curitiba, esta mineira nascida em Belo Horizonte está permanentemente engajada: defende os direitos humanos, acredita que a reforma agrária é necessária não só para quem vive no campo e ajuda a formar uma cooperativa de pequenos produtores de alimentos orgânicos, no interior do Rio de Janeiro, que promove a inclusão social. “Precisamos cuidar do todo se quisermos a colectividade feliz”, diz em seu apartamento no bairro carioca da Gávea. Enquanto isso, sua filha, Clara, 15 anos, fruto do casamento com o actor Ângelo Antônio , se diverte com os primos no computador e um lindo gato preto anda pela mesa da sala de jantar. “Tenho uma relação muito especial com os bichos. Já cheguei a pedir desculpas quando pisei numa cobra”, conta


Actualmente, a actriz vive Ana, uma descendente de índios, na novela global Desejo Proibido. Assim que as gravações terminarem, ela pretende investir em outra paixão: o canto. Talvez grave um CD com amigas de adolescência. “Quem sabe?”, diz, um tanto discreta para tratar da vida pessoal. Separada há três anos de Ângelo, com quem viveu por 14, Letícia namora o também actor Miguel Lunardi , que contracenou com ela em Páginas da Vida (2006).



Uma actriz deve se envolver com as inquietações políticas?
Antes de ser actriz, sou cidadã. Não vivo numa bolha, isolada, ou num mundo de fantasia. Na Grécia Antiga, um oleiro não fazia apenas vasos. Ele dedicava metade de seu dia a questões públicas e da sociedade. Não entendo quem diz que actores devem ser apolíticos. Será que se dizer apolítico não traduz uma certa postura política? Eu vivo aqui, é aqui que tenho que exercer a minha cidadania. Tem uma frase do Leonardo Boff (ex-frade franciscano, escritor) de que gosto muito: “A essência de quem vive numa sociedade é ser um cidadão”.

O que fazemos em casa reflecte no grupo em que vivemos?
Sim. Antes da ordem e do progresso vêm o amor e o respeito, do que decorre a melhor ordem e o melhor progresso. Sinto que somos intimamente ligados ao que se passa ao nosso redor, à natureza, ao todo. O problema é que a gente vai esquecendo e, aos poucos, vai perdendo essa sabedoria essencial, pensando só no próprio bem-estar, esquecendo o entorno, que, no fundo, acaba por reflectir em nós mesmos.

Dá para pensar dessa forma no dia-a-dia?
Somos seres holísticos, feitos de várias camadas e dimensões. Então, podemos lembrar disso no quotidiano, nas mínimas coisas. Quando cuido da saúde da minha filha (no dia da entrevista, Letícia levaria Clara ao médico), não devo pensar só nela, e sim nas crianças. Ao cuidar dela, estou cuidando de todas. Optando por tratamentos naturais, menos agressivos, ajudo Clara e o ambiente. Se entupisse a menina de antibióticos, além de fazer mal, estaria ajudando a produzir epidemias. Sempre que vou a um acampamento de sem-terras , por exemplo, me emociono. Sinto uma enorme gratidão: eles estão buscando um mundo muito melhor para mim também.

Como você saiu do episódio do Senado?
Foi uma experiência que nos ensinou muito. Pediram que eu fosse falar – e eu até não queria, porque há pessoas com mais qualidade que eu para esse assunto –, mas também pudemos confrontar os argumentos de técnicos, de representantes de movimentos sociais e de políticos a favor e contra a transposição, como o senador Marcondes Gadelha, que disse que o rio São Francisco tem muita água e não há problema em tirar um pouco dela para matar a sede dos nordestinos. Isso me remeteu ao modo retrógrado como a humanidade tem feito muitas coisas. Extingue espécies sob a alegação de que, como tem muito, não há problema em caçar bichos ou em extrair recursos naturais sem controle. Mas, como explicou no Senado a promotora Luciana Khoury , há várias alternativas, com custos reduzidos e chances maiores de resolver o problema da seca no Nordeste, além da transposição do rio.

Por que ficou tão contrariada com a discussão com Ciro Gomes?
Fiquei chateada, inclusive comigo, pelo facto de um bate-boca de um minuto ter sido focado com mais relevância pelos jornais do que o que foi dito num debate que durou seis horas. Mas tenho a consciência tranquila. Atendi com abnegação a um pedido do senador Suplicy e pude colocar, na tribuna, minhas reflexões – em nome do Movimento Humanos Direitos e ao lado dos actores Osmar Prado e Carlos Vereza – sobre o direito à água e à sustentabilidade da vida no planeta. Essa audiência pública deveria ter ocorrido antes de o Exército ter iniciado as obras. E ela só aconteceu graças ao gesto extremo de dom Cappio .

Quando passou a se envolver com a questão do São Francisco?
Estive no Tocantins gravando um documentário sobre os índios krahô finalizado em 2007, sobre os palhaços sagrados da tribo, que ajudam a superar dificuldades. Nos dois meses em que esteve entre os índios, Letícia foi baptizada como Tokoüe , nome de uma árvore do local. Desde então, passei a acompanhar a vida dos povos indígenas, quilombolas e a dos moradores da região do São Francisco. Ouvi pontos de vista diversos, participei de conferências no Ministério do Meio Ambiente e pude observar o impacto que as grandes obras do Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC, têm causado para esses povos e para a natureza. Quando frei Cappio fez sua segunda greve de fome, o Conselho Indigenista Missionário e a Comissão Pastoral da Terra pediram o apoio do nosso movimento.

Por que o projecto de transposição do rio ameaçaria esses povos?
A obra não resolverá a crise do semi-árido , muito pelo contrário. Os beneficiados serão as grandes fazendas e as indústrias siderúrgicas. A água servirá à produção agrícola industrial com foco na exportação. Apenas 4% da água desviada será dirigida ao consumo humano e animal. Dom Luiz Cappio , que vive há 30 anos entre ribeirinhos, defende a revitalização do rio, entre outras ideias sensatas. Tentou convencer o governo a considerá-las, mas não foi ouvido.

Suas lágrimas foram uma espécie de marco desse episódio. Valeu a pena chorar?
A insensibilidade do governo foi o que me fez chorar. Ele está impondo essa obra como a única solução. O projecto Atlas do Nordeste, por exemplo, contrapõe a proposta oficial. Foi elaborado por técnicos que estudam o assunto, há mais de 20 anos, com movimentos sociais e até mesmo com a Agência de Águas, do governo. Se for implantado, atenderá nove estados, matará a sede de muito mais gente, vai respeitar a cultura sertaneja e ainda custará bem menos. Só não tem fins industriais. Se valeu a pena chorar? Chorei sem medo, não estou sendo feliz com o autoritarismo do Estado. Sinceramente, eu não esperava essa postura do governo Lula. O que vemos é um presidente que ainda mantém as velhas tradições de poder.

Sua crítica ao poder central é pelo facto de não ter ouvido a sociedade desde o primeiro momento?
Sim. A impressão é de que a democracia ainda não chegou por aqui. Quando vejo a rapidez com que o projecto da transposição foi decidido, fico muito assustada. Há uma mentalidade de desrespeito ao meio ambiente e às múltiplas etnias, e a consequência , entre outras, é o aumento do trabalho escravo e a exploração de mão-de-obra infantil. Isso é democracia?

Você tem a preocupação de educar Clara com essa visão ou considera cedo para introduzi-la nesse universo?
Temos bastante diálogo sobre esses assuntos. Ela me traz da escola e dos livros que lê muitas informações e questões relativas ao Brasil. É uma menina que convive com índios, crianças que moram em favelas, em comunidades rurais. Acho isso importante, é preciso conhecer a diversidade e respeitar os que são diferentes.

Então você é do tipo mãe bem certinha?
Acho que sou uma mãe esforçada. Tento, com amor, acompanhar seu desenvolvimento participando, acolhendo e, às vezes, cobrando com firmeza. Sou mãe italiana, emotiva, às vezes dou uns gritos e me sinto mal. Depois peço desculpas a ela. A Clara também me educa muito.

Foi para liberar o exagero que se tornou actriz?
Não sei se foi para me libertar do exagero ou para me libertar mesmo. A minha profissão exige profundo processo de autoconhecimento. Nada do que é humano me é estranho. Todos os sentimentos, o bem e o mal, habitam em mim. Tenho que reconhecer e lidar com esses contrários. Há em mim pitadas de todos os defeitos e qualidades. Com a experiência, aprendi a não guardar mágoas, a falar o que penso e a reconhecer minha agressividade e tentar canalizá-la.

Agressiva? Você?
Sim, certas vezes sou dura em excesso, até comigo mesma. A agressividade é inerente ao ser humano como também a santidade. Aprendi a não reprimir, porém não estouro em hora imprópria. Aí, seguro a onda. Mas eu não tenho medo da agressividade.

Você tem medo de quê?
Rezo, tenho fé e o medo não me paralisa. Ele é um inimigo, atrapalha a crença na nossa força. Em mim, o medo não é constante, é raro. Sou destemida até demais. Quando criança, treinava muito andando e convivendo comigo mesma no escuro. É preciso algo concreto para sentir medo. Outro dia, vi três rapazes cheirando cola na rua. Eles vieram, dei boa tarde e segui. Então, andaram atrás de mim, e meu coração disparou. Resolvi conversar. Eles disseram que faziam parte de grupos de extermínio. Respondi que eles deveriam conhecer o teatro. Nele poderiam viver histórias mais interessantes que na rua. Um Shakespeare pode ser mais violento do que um assalto à mão armada.

Seu aniversário é no Dia Internacional da M
ulher. Como vê as mulheres hoje?
Elas ainda são as maiores vítimas da exclusão. Ganham menos e suportam a carga da família. Sou apaixonada pelas mulheres. Não tenho essa relação competitiva que, como dizem, existe entre colegas. Tenho sorte nas amizades e no trabalho com mulheres. Elas sabem actuar em grupo, são agregadoras, generosas, disponíveis, compreensivas, guerreiras. Sei que há muito a ser conquistado, em especial na relação com os homens. A sociedade ainda é miseravelmente patriarcal e machista. Mas não fico observando tanto essa diferença de género com quem convivo. Hoje, as mulheres exercem com mais liberdade sua capacidade amorosa de gestar a transformação e a revolução, com poder de participar de decisões que antes eram só deles. Elas necessitam cada vez menos de um homem para se sentirem valorizadas




Fonte:desejoproibido.blogs.sapo.pt

Um comentário:

  1. Linda........... Tem um olhar simétrico. Letícia nasceu com magia de ser bela!!!

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